quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Democratizar o futebol: o que se passa no EC Vitória

Como gritar gol era cada vez mais raro, clamar por democracia se tornava mais frequente.


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Por Daniel Caribé

É difícil determinar quando a exigência de democratização do Esporte Clube Vitória surgiu. Provavelmente há muitas décadas que loucos fora do lugar e do tempo levantam estas ideias, sem contudo ter nenhuma ressonância dentro ou fora das arquibancadas. Não é difícil entender os motivos da invisibilidade desta demanda. O futebol é, dentro dos espaços de reprodução do capitalismo moderno, um dos mais conservadores, corruptos e imersos em irracionalidades. Uma confusão entre empresa e associação, e entre torcedor e consumidor, faz da atividade umas das mais contraditórias. Como, portanto, transpor demandas e práticas da luta dos trabalhadores ou por cidadania para um clube de futebol?

Dos donos dos times, das federações, dos jogadores, das torcidas organizadas, das empresas de comunicações e outras mais, enfim, do meio de muitos interesses, o torcedor ainda se sente proprietário de algo que nem de perto é dele. Enquanto de um lado há toda uma cadeia produtiva, toda uma estrutura voltada para gerar mais e mais dinheiro, do outro há uma paixão que não ousaria explicar aqui, mas que em quase nada consegue influenciar nos rumos do time que chama de seu.

Mas o que acontece quando, no meio dessa paixão do torcedor, ele toma consciência de que nada daquilo de fato lhe pertence? E, mais do que isso, o que acontece quando ele passa a acreditar que é necessário ser verdadeiramente dono?

Sem romantismos, para uma torcida de futebol de um clube de massas (algumas pesquisam contabilizam mais de dois milhões de torcedores do EC Vitória), qualquer tentativa de impor uma única identidade é irresponsável. O EC Vitória, apesar da sua origem aristocrática (foi fundado no ano de 1899), se popularizou nas últimas décadas e nem de perto hoje é de uma torcida elitista. Ainda sim, empresários (grandes e pequenos), gestores das mais diversas origens, resquícios das oligarquias baianas, tudo isso tem que conviver nas arquibancadas do Barradão (estádio localizado no bairro de Canabrava, onde antes havia um aterro sanitário) com os setores mais populares da cidade de Salvador. Inclusive, a gentrificação imposta aos estádios brasileiros por causa da Copa do Mundo de 2014 (ver o texto “O direito ao estádio”) nem de perto atingiu o estádio de Canabrava, que continua, para as dores e alegrias dos seus torcedores, como um estádio antigo, de concreto e de livre circulação, sem cadeiras numeradas e demais formas de censuras recorrentes nas arenas.

Esse caráter popular das arquibancadas do Barradão se contradiz em muito com a diretoria do clube. O EC Vitória sempre serviu de estágio para que velhacos das oligarquias baianas brincassem um pouco. Algumas famílias devem beirar os 100 anos no controle do time. Por um lapso de tempo, na “Era Paulo Carneiro” (hoje diretor de futebol do Atlético do Paraná), o time ousou ser “moderno”, se inseriu na dinâmica mais avançada do capitalismo que se permitia a um time de futebol. Virou um “time empresa”. Uma protorrevolução burguesa aconteceu em Canabrava, mas com as cores rubro-negras. A torcida cresceu e o time também, mas o autoritarismo continuou a ser a marca registrada e, após alguns fracassos, o time chegou à Terceira Divisão do futebol nacional e os filhos das velhas oligarquias tomaram o brinquedo de volta.

Foi aí que os loucos começaram a ser escutados. Não era mais possível entregar o time a nenhuma forma autocrata de gestão. Se o comandante da “revolução burguesa” rubro-negra tinha fracassado, não seriam os oligarcas de sempre que nos colocariam em outro patamar. E sem ilusões aqui também: o torcedor de futebol está pouco ligando se o seu presidente é um fascista ou um democrata, se é um empresário ou alguém dos meios populares. O que importa é ver a bola entrar no gol adversário e as taças na galeria. Não foi, portanto, a crença em uma forma de organizar a vida que prevaleceu, mas a necessidade de apostar no único caminho que ainda não foi posto em prática. O que se estranha é que em tão pouco tempo ela tenha virado consenso. Como gritar gol era cada vez mais raro, clamar por democracia se tornava mais frequente. 


É claro que hoje todo mundo vai querer ser o pai da criança. Gente que há um mês atrás sequer cogitava falar em democratização de um clube de futebol levanta a faixa de “diretas já”. Mas a verdade é que o primeiro movimento surgido das arquibancadas do Barradão que pautou de forma clara a democratização do clube foi o Movimento Somos Mais Vitória – MSMV, no ano de 2010. Outro time do país já havia avançado em direção à democratização do clube (o Internacional de Porto Alegre) e graças a esta mudança se tornou um dos clubes mais vencedor no Brasil e na América Latina. A democracia já não era uma ideia fora do tempo e do lugar, mas uma possibilidade melhor do que o estado atual das coisas. Em 2011 o Vitória não conseguiu sair da Segunda Divisão, retornando aos trancos e barrancos em 2012 à Primeira, mas fez uma campanha inacreditável em 2013, terminando em quinto colocado. O resultado foi que o autoritarismo ganhou um novo fôlego.

Além disso, nesse ínterim, houve eleições no EC Vitória, na base da aclamação do indicado pelo presidente anterior (Alexi Portela), mas tentaram montar uma chapa de oposição que nunca saiu do papel. A chapa tentou engolir o MSMV, estraçalhando com o mesmo, e pautava de forma muito pouco clara a democratização do clube. Seu foco era a “profissionalização” e tinha por possibilidade o regresso de Paulo Carneiro. O resultado foi que o MSMV praticamente se acabou e a chapa não conseguiu concorrer às eleições. Um dos seus líderes foi acusado de estar envolvido em esquemas de corrupção na Prefeitura de Salvador, dando o tiro de misericórdia na articulação da oposição. Alexi Portela, com os portões do Barradão cerrados, encaminhou com tranquilidade e de forma fraudulenta o seu substituto, Carlos Falcão.

Foi nesse período também que o maior rival do time, em uma situação muito pior que a nossa, resolveu se tornar democrático na nossa frente. Não vamos entrar nos melindres do que aconteceu por lá, mas resumidamente podemos afirmar que o time se tornou refém do Governo do Estado por não ter estádio próprio e, com a implosão do estádio da Fonte Nova e construção de uma Arena no lugar, o novo equipamento precisava de um time que desse sentido aos gastos feitos para a Copa do Mundo. O EC Vitória, tendo o seu próprio estádio, e apesar de a diretoria ter insinuado a migração, tinha condições de evitar a imposição do Governo do Estado e a própria torcida recusou a mudança de endereço. Nesse momento aconteceu uma intervenção judicial no time de lá, que implementou a associação dos torcedores de forma massificada e convocou as tão sonhadas eleições. O fato é que, mesmo desta forma tosca, o time deu um salto qualitativo, voltando a ser bicampeão baiano após duas décadas. Agora havia também a experiência exitosa do rival e a desejo de democracia ia se tornando em algo concreto. O Movimento Somos Mais Vitória chegou a lançar duas notas se posicionando a respeito do que acontecia (ver aqui e aqui).

Em 2014 o time foi rebaixado mais uma vez e novas articulações ganharam força nas arquibancadas do Barradão exigindo democratização do clube. Com a experiência do MSMV, um grupo de torcedores resolveu fundar um novo movimento, chamado Vitória Livre. O Vitória Livre sabia que não poderia vacilar entre ser um movimento ou um grupo de oposição com a intenção de concorrer às próximas eleições. Tinha que focar em pautas concretas e plausíveis para manter a precária unidade e não se deixar capturar por interesses outros. O objetivo era reformar o estatuto do time, convocar eleições diretas e permitir que a torcida escolhesse os dirigentes do clube, abrindo a possibilidade para que o torcedor pudesse também se candidatar. A tática utilizada foi a de recolher assinaturas dos sócios torcedores nos portões do estádio em dias de jogo do time e, ao juntar uma quantidade considerada de assinaturas, exigir a convocação de uma assembleia geral.

Essa forma permitiu que o Vitória Livre ganhasse o respeito e o apoio da torcida, pois foi necessário conversar com vários torcedores ao longo de alguns meses. Foram recolhidas quase mil assinaturas dos sócios torcedores, num quadro de sócios cada dia mais reduzido por conta dos fracassos do time em campo e da má vontade da atual diretoria em estimular a associação. Isso porque, como prevê o atual estatuto nunca posto em prática, com 18 meses de associação o torcedor teria direito a votar nas eleições do conselho (e o conselho escolhe o presidente) e a diretoria fazia de tudo para que o torcedor não participasse da vida do clube para além dos gritos nas arquibancadas. Outros movimentos surgiram nas arquibancadas do Barradão e, a cada tropeço do time em campo, mais torcedores apoiavam a ideia de democratização do time. Entretanto, alguns movimentos passaram a apoiar um processo idêntico ao do rival, solicitando a intervenção judicial.

Em um desses fracassos em campo, o último presidente (Carlos Falcão), com pouco mais de um ano no cargo, solicitou afastamento e uma corrida pelo poder no clube se instaurou, mas também abriu espaço para que finalmente a reforma estatutária saísse do papel. A ideia de democratização do time, que já havia se alastrado pelas arquibancadas, ganhou também parte dos grupos que disputavam o poder há anos. Entretanto, é impossível dizer quem de fato apoia a democratização do clube ou quem aderiu ao movimento entendendo que quem fosse contrário nesta altura do campeonato estaria eliminado do comando. Além do mais, o que essas pessoas entendem por democratização de um time de futebol?

Da pressão das arquibancadas, saiu a convocação para uma Assembleia Geral “consultiva”, ocorrida no dia 06 de junho de 2015. A Assembleia não tinha o propósito de decidir nada, apenas o de dar uma satisfação à torcida. De qualquer forma, os representantes dos diversos movimentos foram chamados para compor a mesa e a palavra foi franqueada para os torcedores que se fizeram presentes. O consenso em torno da democratização do clube foi formado, com nenhuma voz se opondo publicamente. Só falta entender para que lado essa democratização irá.

Apenas quem destoou dos demais presentes foi a maior torcida organizada do clube, Os Imbatíveis, que se posicionava sempre ao lado da diretoria do clube e contra a democratização, com medo que “aventureiros” tomassem o time de assalto. Em troca do apoio, o presidente da torcida se tornou conselheiro do EC Vitória. Os representantes da torcida organizada presentes na Assembleia não se colocaram, mas ameaçaram fisicamente os outros torcedores que vaiaram quando o nome do seu presidente foi anunciado, deixando o ambiente tenso.
Antes dessa assembleia ocorreu a articulação de vários movimentos e uma das figuras que se destacou foi Augusto Vasconcelos. Assim como setores ligados ao PT influenciaram bastante no processo de intervenção no time rival, no Vitória parece que é o PCdoB que se interessa pelos caminhos tomados. Augusto Vasconcelos é um advogado filiado ao PCdoB e atualmente presidente do Sindicato dos Bancários, um dos sindicatos mais importantes do Estado. Entre esses movimentos que Augusto conseguiu se articular se encontra tanto o que sobrou do MSMV quanto o Vitória Livre. A unidade desses movimentos passou a se chamar Movimento Por Um Vitória Melhor, tendo Augusto o seu próprio movimento, chamado de Frente 1899. O momento é delicado porque ao mesmo tempo que a unidade entre os diferentes movimentos dá mais força à demanda, por outro, tira de alguns deles a radicalidade, podendo centralizar nos “líderes” as negociações que envolvem o interesse de milhares. E, é claro que não é somente o PCdoB que tem interesse nos rumos do EC Vitória, muito menos só os partidos políticos.


Os pontos que parecem unificar a todos esses movimento são: 1) convocação da Assembleia Geral deliberativa para aprovar o novo estatuto e realização das eleições ainda em 2015; 2) eleições não só para escolher o presidente, mas também todo o conselho, ampliando a democratização aos demais espaços do clube; 3) conselho proporcional e mais enxuto (algo em torno de 100 conselheiros, quando atualmente o número passa dos 400); 4) remodelação e expansão do plano de associação; e 5) profissionalização da diretoria, com remuneração para os dirigentes.

É bem confuso se posicionar diante de tudo isso. Por um lado, não deixa de ser animador ver uma torcida de futebol exigindo participar da gestão do próprio time. Gerir os próprios ócios pode servir de aprendizado para a gestão das demais dimensões da vida, inclusive a principal, que é a gestão da economia. Por outro lado, não se pode cair na ilusão de achar que a democracia é um fim em si mesma. Da mesma forma que a democracia só serve aos trabalhadores se for para tirá-los da miséria e da opressão, em um time de futebol o que se quer, principalmente, são vitórias e títulos e, em troca disso, muitos podem abrir mão desses valores progressistas na próxima esquina. Nunca se sabe que tipo de represália um time de futebol verdadeiramente democrático pode receber nesses meios e, sendo um time médio do futebol brasileiro, não resistiria por muito tempo atuando de forma contrária às práticas dominantes. Portanto, quanto tempo a torcida sustentaria um time democrático que não consegue vencer em campo?

Ainda, foi surpreendente ver os dilemas dos movimentos sociais acontecerem dentro de um estádio de futebol. A burocratização da luta, a captura das pautas por gestores, o movimento ambíguo de apatia e de euforia, as diferentes táticas dos movimentos e partidos (a chapa que pretendia concorrer às eleições), a milícia fascista oprimindo os demais (a torcida organizada) e por aí segue. Isso tudo sem deixar de considerar que a torcida é formada por pessoas das mais diferentes classes sociais.

Diante do que se passa, as expectativas que ficam são: 1) que a maior torcida organizada do clube mude suas práticas, pare de ameaçar os torcedores (nas arquibancadas e nas redes sociais) e se posicione de fato ao lado dos demais na luta pela democratização. Querendo ou não, é a voz da torcida quando a bola está rolando no gramado; 2) que a unidade entre os diferentes movimentos não retire de alguns a radicalidade na luta pela democratização do clube, que a prática de conversar e envolver cada torcedor continue, sem jogar peso nas articulações de gabinete; 3) que não se crie nenhuma ilusão nas pessoas, mas sim na reforma das instituições. Alguns podem conseguir expressar os interesses das arquibancadas e se tornarem, portanto, uma vanguarda legítima. Mas para virar uma nova elite não demora muito, ainda mais se se trata de filiados a partidos que nunca foram simpáticos aos processos democráticos. A luta, portanto, não pode girar para a eleição de A ou B, mas para a consolidação de uma nova estrutura democrática no EC Vitória; e, por último, 4) que se avance o mais rápido e de forma mais radical possível neste momento, pois nunca se sabe quando teremos uma conjuntura tão favorável quanto a atual.




Publicado originalmente no Passa Palavra.

2 comentários:

  1. Excelente matéria! Muita coisa aí que eu não sabia. SRN!!

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  2. O momento não é de ficarmos omisso, e sim de enfrentarmos essa situação de frente, o clube tem que ser libertado dessa ditadura maligna.

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